MADONNA 1984, ELIS AIR 2025

A cultura skateboard é um caldeirão efervescente, um terreno fértil onde o passado e o presente se encontram, onde o local se funde ao global, e onde o corpo, a mente e a alma dialogam em giros, saltos e também quedas.

Neil Blender, criador do Lien Air

Tuco clássico madonna
/// 30 de Julho 2019


Ela não apenas reflete a realidade ao seu redor, mas a transforma, absorvendo elementos de tempos e espaços distintos para criar algo novo, visceral e, acima de tudo, atávico — uma conexão primal com a liberdade de expressão que transcende fronteiras. O exemplo da evolução da manobra Madonna, de Tony Hawk, para a Elis Regina, de Tuco Manica, é uma prova pulsante desse sincretismo, um testemunho de como o skate é mais do que um esporte: é um vetor de cultura, memória e identidade.
Vamos voltar a 1984, um ano que reverbera tanto na história do skate quanto na música. Tony Hawk, já um prodígio das rampas, pega a manobra primordial, o Lien Air — criada por Neil Blender, que ousou executar a clássica “backside air” girando para frontside — e a subverte. Ele adiciona um chute de one foot (pé da frente para trás do corpo) e finaliza aterrisando “into tail”, um Lien air into tail one foot.
Ousado, um incremento que se tornou épico na Cultura Skateboard. Mas ainda faltava algo para que a manobra conquistasse o mundo. Hawk, atento ao pulso cultural da época, batiza sua criação com o nome da maior força pop do momento: Madonna. Não a Virgem Maria, mas a rainha provocadora dos palcos, cujos hits como “Like a Virgin” dominavam as rádios e cuja ousadia estética desafiava convenções. A escolha não é aleatória. Madonna, a artista, encarna o espírito rebelde e performático que o skate também carrega — uma dança no limite, um grito de autenticidade. Assim nasce a manobra Madonna, um ícone do skate vertical que cruza o Atlântico e se espalha como um vírus cultural.
Quarenta anos depois, em 2024, o skate continua sua jornada de reinvenção. No sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, Tuco Manica, um skatista nascido em terras gaúchas, decide dar um “giro” além nessa história. Ele pega a Madonna de Hawk e injeta um giro no skate que traz a manobra para um novo patamar de complexidade e fluidez. Mas Tuco não quer apenas inovar tecnicamente; ele quer enraizar sua criação no solo onde cresceu, nas ruas e pistas que moldaram seus primeiros rolês. E que lugar mais simbólico do que a Pista do IAPI, em Porto Alegre, um templo do skate brasileiro, um marco de concreto onde gerações de skatistas gaúchos deixaram suas marcas? Foi ali, entre ollies e quedas, que Tuco deu seus primeiros giros, e foi ali que encontrou a inspiração para nomear sua manobra.
A escolha não poderia ser mais visceral: Elis Regina. A “Pimentinha”, como era chamada, é mais do que uma cantora no panteão da música brasileira — ela é um símbolo de resistência, emoção crua e genialidade. Nascida em Porto Alegre, Elis cresceu no bairro do IAPI, a poucos passos da pista que hoje é sagrada para os skatistas locais. Sua voz, que ecoou hinos como “Águas de Março” e “O Bêbado e o Equilibrista”, carregava a alma de um Brasil em transformação, um país que lutava por liberdade durante os anos sombrios da ditadura. Para Tuco, nomear a manobra como Elis Regina é mais do que um tributo à maior voz da música brasileira; é uma reverência à sua própria história, à avó Fides Leal Manica, uma carioca que se radicou no Rio Grande do Sul e que, como Elis, trouxe consigo um pedaço de outra terra para enriquecer o solo gaúcho.
Aqui, o sincretismo da cultura skateboard se revela em toda sua potência. A Madonna de Tony Hawk, nascida nos Estados Unidos sob o signo do pop globalizado dos anos 80, cruza o oceano e o tempo para encontrar a Elis Regina de Tuco Manica, enraizada na ginga brasileira, no concreto do IAPI e na memória de uma nação.
É um diálogo entre duas épocas, dois continentes, duas figuras icônicas que, cada uma a seu modo, desafiaram o status quo. Madonna, com sua reinvenção constante e sua provocação, encontra eco em Elis, cuja intensidade visceral e compromisso com a arte a tornaram eterna. E o skate, esse meio bruto e poético, serve como ponte, unindo o global ao local, o técnico ao emocional, o corpo à alma.
A manobra Elis Regina, com seu giro adicional, é mais do que uma evolução da Madonna — é uma celebração da identidade brasileira dentro de um esporte que floresceu nos Estados Unidos, mas que hoje pertence ao mundo. No Rio Grande do Sul de 2024, onde a cultura do skate floresce em meio a uma cena vibrante e diversa, Tuco Manica não apenas homenageia Elis e sua avó, mas também reafirma o poder transformador do skateboard. Ele nos lembra que cada trick, cada giro, carrega uma história, um lugar, uma voz. E assim, seja em uma half-pipe, em um bowl ou nas ruas de Porto Alegre, a Madonna de Hawk e a Elis de Tuco dançam juntas, provando que o skate é, acima de tudo, um ato de criação coletiva, um sincretismo vivo que não para de girar.

/// FONTE /// AG5

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Por Sagaz

/// Diretor de Arte por profissão e Skatista da vida. Conhecido como Julio Sagaz no Vale do Paraíba/SP, skatista overall desde 1995, passando pelas marcas Ramp Real Street/Santos, Posso! Caçapava, Posso/Adidas, Posso/RedNose e DoubleM. Atualmente é diretor da agência de publicidade e criador do maior portal de skate do vale do Paraíba a Skate Vale Brasil. O portal se destaca não apenas por divulgar os principais picos de skate, pistas, principais eventos e talentos do skate, mas também por ser a única mídia de skate que inclui LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) em sua plataforma, promovendo a inclusão e acessibilidade. 🛹💥🤟🌎📌📸 #juntossomosmaisfortes #skatesalva #mapadaspistas #valedoparaibasp